Esses animais não humanos possuem o aparato anatômico-fisiológico que permite perceber a dor, processar essa informação no cérebro e desencadear comportamentos complexos em resposta.
A questão sobre a possibilidade dos peixes sentirem dor foi (e ainda é!) motivo de intensas discussões na área de comportamento e bem-estar animal. Mas o peso das evidências científicas de que os peixes realmente são capazes de sentir dor vem se acumulando consideravelmente ao longo dos anos, a ponto de que não podemos mais negar essa ideia. E isso apresenta implicações diretas na forma como lidamos com esses animais não humanos nos sistemas de produção, na pesca, nos laboratórios ou mesmo em aquários ornamentais.
Os peixes vivem na água, o que por si só representa um mundo à parte bem diferente de onde nós, seres humanos, vivemos. É um ambiente com suas próprias características e singularidades, com seus próprios desafios, que muitas vezes são diferentes do ambiente terrestre. Os peixes são animais pecilotérmicos, ou seja, regulam sua temperatura corporal de acordo com a temperatura do ambiente, o que é diferente do que acontece nos humanos. Eles também não têm expressões faciais ou corporais muito semelhantes às nossas. Talvez todas essas diferenças muitas vezes sejam um entrave para aceitar a ideia de que eles são animais não humanos que, assim como nós, podem sim sentir dor, dentre outras emoções.
Mas não são as diferenças com o ser humano que importam, e sim o que a ciência diz sobre a capacidade dos peixes sentirem dor. Veja algumas evidências científicas relevantes:
- – Peixes têm células receptoras “de dor” e processam a informação dolorosa: Há diversas pesquisas que apontam para o fato de que ao menos algumas espécies de peixes possuem as células receptoras de estímulos dolorosos (nociceptores), além de fibras condutoras ativas desses estímulos [1] [2] [3] – conhecidas como fibras C e fibras A-delta – que servem como uma espécie de ‘caminho’, conduzindo essa informação para o cérebro dos peixes. Os estudos também têm demonstrado que a informação do estímulo que causa dor é então processada no cérebro [2] [3] [4] e acaba desencadeando respostas comportamentais que vão muito além de um mero reflexo [2]. E é difícil imaginar que todo esse aparato anatômico-fisiológico esteja presente apenas nas espécies de peixes em que já foi investigado.
- – Peixes com dor não respondem apenas com meros reflexos: Retirar instantaneamente a mão do fogo para não se queimar é uma resposta reflexa que um ser humano faz automaticamente, ou seja, não é necessário processar a informação no cérebro para realizar o movimento. Por outro lado, esfregar uma região machucada ou queimada na tentativa de amenizar a dor posteriormente é algo que requer o envolvimento de consciência. No caso dos peixes, isso não é diferente. Há estudos que trazem as alterações comportamentais complexas que os peixes são capazes de fazer quando em situações em que estão sentindo dor. Por exemplo, quando vinagre foi injetado nos lábios da truta-arco-íris, esses peixes começaram a esfregar a região afetada no cascalho do fundo ou mesmo nas paredes do aquário [2].
- – A dor afeta seus comportamentos naturais: Os peixes normalmente têm uma aversão inicial por objetos novos inseridos no ambiente – assim como muitos outros animais, mas em situações dolorosas eles perdem essa resposta, ou seja, eles perdem esse medo natural quando estão com dor [5]. Se os peixes já estavam previamente condicionados a buscar alimento na superfície da água quando a luz do ambiente acende – algo que pode ser facilmente observado em aquários ornamentais – eles simplesmente deixam de apresentar essa resposta se estiverem com dor [1]. Isso deve ocorrer porque a dor desvia a atenção do peixe, afetando seu comportamento – assim como pode acontecer com um ser humano com dor. Essas respostas não podem ser encaradas como um simples reflexo desses animais não humanos.

- – Peixes tentam evitar a dor: Os peixes são até capazes de modular sua resposta comportamental ao estímulo doloroso dependendo das circunstâncias. Por exemplo, um estudo mostra que o peixinho dourado e a truta-arco-íris aprendem rapidamente a evitar regiões específicas do aquário se eles tomarem choques elétricos nessas regiões [6]. Mas, no caso da truta, os indivíduos foram capazes de tolerar choques mais fracos para ficarem perto de outros peixes da própria espécie [6], tamanha a importância da socialização para a truta.
- – Se receberem analgésicos voltam a se comportar naturalmente: Uma vez que o estímulo doloroso tenha sido percebido pelos peixes, desencadeando claras alterações comportamentais em resposta, o comportamento natural desses indivíduos pode voltar ao normal se eles receberem analgésicos! Tem estudo mostrando que os peixes voltam a expressar o medo natural de se aproximar de objetos novos no aquário ao tomarem analgésicos após receberem um estímulo nocivo [5].
- – Peixes sentem outras emoções além da dor: Medo é outra emoção que os peixes demonstram nos estudos [2], assim como estresse e ansiedade. Inclusive há espécies que são usadas como modelo experimental em estudos sobre ansiedade [7]. Ou seja, além da dor, esses animais são capazes de sentir outras emoções negativas que causam sofrimento. Eles também podem sentir emoções positivas, como alguns pesquisadores já estão argumentando, embora menos da metade dos brasileiros reconheça que os peixes são capazes dessas emoções, segundo uma pesquisa da Faunalytics.
Existem posicionamentos contrários?
Diante de tantas evidências científicas, fica difícil negar que peixes sentem dor. Mesmo assim, ainda existem pesquisadores que defendem essa ideia com base em argumentos de que os peixes não têm as regiões corticais específicas que são associadas ao processamento cerebral da dor em mamíferos [8] [9], ou mesmo que as fibras condutoras mais associadas à dor crônica em mamíferos (fibras C) são raras em peixes [9]. Mas não é porque não existem regiões cerebrais especializadas exatamente onde elas ocorrem em mamíferos, que tais regiões realmente não existam em peixes. Mesmo a ausência dessas regiões cerebrais não deve ser encarada como um impedimento para realizar comportamentos que são associados a elas nos seres humanos.
Os peixes são capazes de usar diferentes lados do cérebro para realizar atividades distintas – algo que se chama lateralização [10] – mesmo considerando que a região do neocórtex cerebral é ausente nesses animais, sendo que no ser humano essa é uma região bem associada à capacidade de lateralização. E mesmo tendo em conta que as fibras mais associadas a dor crônica em mamíferos (fibras C) sejam mais raras em peixes, isso não significa que eles não sejam capazes de sentir dor, pois ao menos as fibras associadas a dor aguda nos mamíferos (fibras A-delta) são frequentes em peixes, como demonstram os estudos [1] [2]. E veja que ser raro não significa ser inexistente!

Animais complexos
Assim, mesmo que os peixes não sejam capazes de sentir a dor da forma especializada como os mamíferos sentem – incluindo os seres humanos, isso não quer dizer que eles não sejam capazes de sentir dor de alguma forma. Do ponto de vista evolutivo, é adaptativo para os animais em geral perceber estímulos nocivos que podem ser muito prejudiciais ao organismo. Com isso, os animais humanos e não humanos – incluindo os peixes – podem evitar esses estímulos em eventos futuros. A evolução geralmente ocorre em passos graduais ao longo do tempo, o que torna improvável a ideia de que sentir dor, da forma complexa como ela é nos seres humanos, tenha surgido apenas nos mamíferos. Inclusive, um estudo de revisão relatou que a biologia do sistema relacionado à percepção da dor em peixes é surpreendentemente semelhante àquela que é encontrada nos mamíferos [11].
Peixes usam ferramentas, constroem ninhos, cooperam com outros indivíduos da própria espécie ou mesmo de outras espécies, são capazes de aprender comportamentos complexos, têm memória que pode durar meses e são até capazes de reconhecer e diferenciar rostos humanos! Há inúmeros estudos mostrando as mais diversas e surpreendentes capacidades cognitivas dos peixes, o que também sugere que eles sejam animais sencientes, ou seja, capazes de sentir ao menos as emoções mais básicas, tais como a dor. Como afirma a renomada Victoria Braithwaite em seu livro ‘Do Fish Feel Pain?’ [12] sobre a questão da dor em peixes, pelos experimentos e resultados que ela reúne no livro é evidente que eles sentem dor e isso deve mudar a forma como nós pensamos e agimos em relação a esses indivíduos.
Quer saber mais sobre este assunto? Veja o Papo Reto – Afinal, peixes sofrem?:
Carol M. Maia é especialista em peixes da Alianima, bióloga, doutora em zoologia na área de comportamento e bem-estar animal e especialista em jornalismo científico.
Referências:
1. Sneddon L. U., Braithwaite, V. A. e Gentle, M. J. (2003). Do fishes have nociceptors? Evidence for the evolution of a vertebrate sensory system. Proceedings of the Royal Society B, 270 (1520): 1115-1121.
2. Braithwaite V. A. e Boulcott P. (2007). Pain perception, aversion and fear in fish. Diseases of Aquatic Organisms, 75: 131-138.
3. Dunlop R. e Laming P. (2005). Mechanoreceptive and Nociceptive Responses in the Central Nervous System of Goldfish (Carassius auratus) and Trout (Oncorhynchus mykiss). The Journal of Pain, 6 (9): 561-568.
4. Nordgreen J., Horsberg T. E., Ranheim B. e Chen A. C. N. (2007). Somatosensory evoked potentials in the telencephalon of Atlantic salmon (Salmo salar) following galvanic stimulation of the tail. Journal of Comparative Physiology A, 193: 1235-1242.
5. Sneddon L. U., Braithwaite, V. A. e Gentle, M. J. (2003). Novel object test: examining nociception and fear in the rainbow trout. The Journal of Pain, 4 (8): 431-440.
6. Dunlop R., Millsopp S. e Laming P. (2006). Avoidance learning in goldfish (Carassius auratus) and trout (Oncorhynchus mykiss) and implications for pain perception. Applied Animal Behaviour Science, 97 (2-4): 255-271.
7. Maximino C., de Brito T. M., Dias C. A. G. D., Gouveia A., Morato S. (2010). Scototaxis as anxiety-like behavior in fish. Nature Protocols, 5(2): 209-216.
8. Rose, J. D. (2002). The Neurobehavioral Nature of Fishes and the Question of Awareness and Pain. Reviews in Fisheries Science, 10(1):1-38.
9. Rose, J. D., Arlinghaus R., Cooke S. J., Diggles B. K., Sawynok W., Stevens E. D. e Wynne, C. D. L. (2014). Can fish really feel pain? Fish and Fisheries, 15(1): 97-133.
10. Vallortigara G. e Bisazza A. (2002). How ancient is brain lateralization? In L. Rogers & R. Andrew (Eds.), Comparative Vertebrate Lateralization (pp. 9-69). Cambridge: Cambridge University
Press.
11. Sneddon, L. U. (2019). Evolution of nociception and pain: evidence from fish models. Philosofical Transactions of the Royal Society B-Biological Sciences, 374 (1785): 20190290.
12. Braithwaite V. A. (2010). Do fish feel pain? Oxford University Press: New York, USA. 194 p.